terça-feira, 24 de agosto de 2010

A palavra "vivência"


Texto extraído da Speculum - Vocabulário da Filosofia

Tomando o termo em sentido lato (1), de acordo com a acepção que já adquiriu foros de cidadania na psicologia empírica, vivência é todo fato de consciência, na medida em que seu sujeito se apreende a si mesmo (de modo reflexo ou não reflexo) como encontrando-se numa determinada situação psíquica. Assim compreendida, a capacidade vivencial distingue os homens e os animais das plantas, as quais vivem sem "viver" a sua vida.
Vivência (2), em sentido estrito e relevante, é exclusiva do homem. Pode caracterizar-se como atitude global valorativa da "alma toda", na unidade, profusão e profundidade de suas disposições espirituais, ante a plenitude de sentido e de valor que, anteriormente a toda reflexão, refulge de modo concreto num ser objetivo. Muitas vezes esta vivência, este "viver por excelência", contrapõe-se unilateralmente, como estado meramente emocional e passivo, à atitude intelectual e ativa. Contudo não há autêntica vivência sem pensamento. Distingue-se ela, decerto, da reflexão racional, discursiva e abstrata, porque no momento do "viver" intenso o valor objetivo é apreendido de maneira concreta e desprovida de reflexão. Mas a vivência distingue-se também (pela relação com o valor) da mera fome de sensações, bem como (pela peculiaridade e força vital operativa da vivência séria) do sentimento lúcido, superficial ou apaixonado, do vago sentimentalismo e de um nebuloso estado de ânimo. Nem sempre é um "sentir-se empolgado" meramente passivo; pelo contrário, não raro se une, e até estreitamente, a um tender ativo para uma meta, a uma vontade ativa de plasmação, a uma tensão para agir. Consoante na vivência total se salientam como maior intensidade os aspectos emocionais, intelectuais ou imaginativos, assim ela será mais receptiva ou produtiva, mais sintética ou mais orientada para os contrastes; e consoante a vivência de dirigir predominantemente para o formal ou para o conteúdo do objeto valioso, assim há lugar para distinguir diferentes tipos de vivência. A genuína vivência, requer certa elasticidade psíquico-somática, concentração da alma, maturidade de evolução e possibilidade de ser atraído por "valores", de sorte que não só lhe são obstáculos a mera fome de excitações, a atitude crítico-cínica e muitas formas de debilidade psicopatológica, como também, via de regra, uma vivência profunda não se apresenta antes da adolescência senão em formas precursoras e imaturas.
O cuidado e o cultivo das formas imaturas da genuína e intensa vivência, em sua típica peculiaridade e em suas possibilidades de desenvolvimento e de degeneração, são da máxima transcendência, tanto para melhor compreender a criança e o jovem, como para estimular seu progresso espiritual, sendo uma das tarefas primordiais da educação a de habilitar o ser humano para uma vigorosa vivência do valor. — Willwoll. [Brugger].
O primeiro que investigou com amplitude a natureza das vivências foi Dilthey.
 A vivência é, para este autor, algo revelado no processo anímico dado na experiência interna; é um modo de existir a realidade para um certo sujeito. A vivência não é, portanto, algo dado, somos nós que penetramos no interior dela, que a possuímos de uma maneira tão imediata que até podemos dizer que nós somos a mesma coisa.
Na fenomenologia, definida precisamente por Husserl como uma descrição das essências que se apresentam nas vivências puras, o fluxo do vivido é anterior ao físico e ao psíquico, que se encontram dentro dele. As vivências, entendidas como unidade de vivência e de sentido, devem ser descritas e compreendidas mas não explicas mediante processos analíticos ou sintéticos, pois são verdadeiramente unidades e não só agregados de elementos simples. A vivência é efetivamente vivida, isto é, experimentada como uma unidade dentro da qual se inserem os elementos que a análise decompõe, mas a vida psíquica não é constituída unicamente por vivências sucessivas, antes estas e os elementos simples, juntamente com as apreensões, se entrecruzam continuamente. Por outro lado, as vivências decompõem-se, por assim dizer, em vivências particulares e subordinadas, que podem interromper-se no curso temporal sem deixarem de pertencer a uma mesma vivência mais ampla e fundamental. Assim, por exemplo, pode dar-se inclusivamente uma vivência que se repete ao longo de uma vida e à qual se incorporam múltiplos elementos, engrandecendo-a e enriquecendo-a, juntamente com outras vivências que penetram na anterior, mas que pertencem a unidades diferentes.

http://www.filoinfo.bem-vindo.net/filosofia/modules/wfsection/article.php?articleid=43




terça-feira, 10 de agosto de 2010

DA FILOSOFIA À CIÊNCIA

Denis HUISMAN e André VERGEZ - Curso Moderno de Filosofia, p. 155-158.
Na antiguidade, a filosofia confundia-se com a ciência; ou melhor, a ciência não se distinguia da filosofia; a ciência moderna — com seu ideal de medida e verificação e seus métodos rigorosos — ainda não havia nascido, e já a palavra filosofia designava o conjunto do saber. Aristóteles, por exemplo, declarava: "Concebemos o filósofo, primeiro que tudo, como possuindo a totalidade do saber, na medida do possível". No século XVII, a palavra filosofia ainda é, comumente, sinônimo de "ciência física". Por exemplo, a obra fundamental em que Newton expõe sua mecânica intitula-se "Princípios matemáticos de filosofia natural". Em página muito célebre de seus "Princípios de Filosofia", Descartes declarava que "toda a filosofia é como uma árvore cujas raízes são a metafísica, o tronco a física e os três ramos principais a mecânica, a medicina e a moral". Assim, não só a metafísica ou filosofia primeira (estudo de Deus, da alma, do conhecimento em geral) e a moral são para Descartes, como para nós, disciplinas filosóficas; mas "ciências" no sentido moderno — como a física, a mecânica ou mesmo as técnicas — ciências aplicadas como a medicina, fazem parte da filosofia. Aliás, as quatro partes de que se compõem os "Princípios de Filosofia" intitulam-se respectivamente: "Dos princípios do conhecimento humano", "Dos princípios das coisas materiais", "Do Mundo visível" etc. e, finalmente, "Da Terra".
EMANCIPAÇÃO DAS CIÊNCIAS
Séc. IV a.C. * Euclides Geometria
Séc. III a.C. * Arquimedes Mecânica
Séc. XVII * Galileu Física
Séc. XVIII * Lavoisier Química
Séc. XIX * Lamarck Cl. Bernard Biologia
Séc. XIX * A. Comte Sociologia
Séc. XIX *Wundt Watson Psicologia
No decorrer da história, entretanto, as diversas ciências que se confundiam com a filosofia separaram-se, como ramos de um tronco comum, dessa filosofia inicialmente considerada como saber universal. Muito cedo, a matemática, com a geometria de Euclides e a mecânica de Arquimedes libertaram-se da tutela filosófica; depois a física, com Galileu e Newton, abandonou totalmente a metafísica de que dependia. Em seguida, foi a vez da química, que se constituiu em oposição à alquimia (recorde-se a procura da "pedra filosofal"), com Lavoisier. Finalmente, no século XIX, a biologia iria conquistar sua independência, anunciada, desde 1802, por Lamarck e realizada por Claude Bernard.
Irá a "filosofia" conservar um domínio que propriamente lhe pertença? Alguns seriam tentados a reservar-lhe o estudo do homem. Já Sócrates, deixando o universo aos deuses, via na reflexão sobre si mesmo a vocação própria da filosofia: "Conhece-te a ti mesmo". Mas as ciências, atualmente, penetraram no domínio humano. Comte, desde a metade do século XIX, considerava-se o fundador de uma "sociologia" científica. A sociologia e a psicologia propõem-se, atualmente, a aplicar aos fatos humanos o método experimental e a medida. A psicologia, no curso secundário francês, ainda é estudada no curso de filosofia; mas todas as universidades estrangeiras ligam o departamento de psicologia à faculdade de ciências... A própria "orientação de consciência", com a psicanálise, tende a tornar-se uma técnica científica!
Assim, o domínio da filosofia seria, progressivamente, restringido até desaparecer. Augusto Comte pensava que o conhecimento científico representava a maturidade do espírito humano. No início de sua história os homens adaptavam explicações teológicas (a tempestade seria explicada como um capricho do deus dos ventos); mais tarde, substituíram os deuses por forças abstratas, tendo-se, desse modo, a explicação metafísica (a tempestade explicada pela "virtude dinâmica" do ar). Finalmente, a explicação moderna, positiva ou científica, renuncia a imaginar o por que último das coisas, limitando-se a descrever como se passam os fatos. Trata-se de unir os fenômenos entre si, de descobrir "leis naturais invariáveis" às quais estão sujeitos. O vento, por exemplo, é um deslocamento de ar das camadas de alta pressão para as de baixa pressão atmosférica (as observações barométricas das diversas estações meteorológicas permitem, assim, a previsão das tempestades).
O espírito positivo teria, portanto, afastado, sucessivamente, a teologia e a metafísica da matemática (que ainda era, com Pitágoras, magia e mística do número), da astronomia, da física, da química, da biologia e da sociologia, tornando-se positivas as ciências nessa mesma ordem, que é a da complexidade crescente.
A evolução indicada por Augusto Comte é exata em suas linhas gerais. Devemos concluir daí, com os partidários do cientificismo, que a filosofia não tem mais objeto, que as ciências são o suficiente?
Essa não era a opinião de Augusto Comte, que deixava à filosofia um lugar essencial. O filósofo é, para ele, o "especialista das generalidades". Ademais, para Comte, as ciências mais "complexas" dependem das mais simples. É preciso ser matemático para fazer física, químico para fazer biologia. O sociólogo que estuda esse "organismo complexo e dependente" que é "a humanidade" necessita, pouco a pouco, conhecer as outras ciências que estudam, precisamente, as condições de existência da humanidade (por exemplo: a biologia que estuda nosso corpo, a física e a química que estudam o meio externo). Enfim, o sociólogo-filósofo conhece todas as ciências e faz a síntese de seus ensinamentos, para poder dirigir a humanidade racionalmente.
Certamente, é hoje impossível pedir ao filósofo que seja um sábio em todas as especialidades. Podemos, ao menos, exigir dele uma cultura geral que não seja uma ignorância enciclopédica. Inicialmente, podemos ver na filosofia uma reflexão de conjunto sobre a história das ciências e os problemas suscitados pelo conhecimento científico — note-se que dizemos uma reflexão e não uma soma de conhecimentos. A filosofia não é a adição das ciências, ela, dizia Thibaudet, "não é a ciência de tudo, mas a ciência do todo"; isto é, uma visão unificada do mundo que encontra seus elementos nas diversas ciências que exploram cada uma, um domínio particular.
Mas também é desejável que o filósofo estude, de maneira mais precisa e mais profunda, esta ou aquela ciência. Podemos especializar-nos na filosofia da história, na filosofia da biologia, na filosofia do direito. Disse um contemporâneo, e muito justamente, que "toda boa matéria lhe é estranha", entendendo com isso que a filosofia não deve ser uma meditação vazia, mas uma reflexão alimentada por informações precisas sobre este ou aquele domínio do real.
Portanto, se as ciências positivas se desprenderam progressivamente das especulações filosóficas (o que, em contrapartida, criou uma disciplina especializada da filosofia), resta que a filosofia não poderia perder o contacto com a evolução das ciências e das técnicas, a qual fornece temas preciosos para suas reflexões.
Todavia, a ciência não pode substituir a filosofia. A ciência procura e encontra verdades. Mas a pergunta: "Qual é a essência da Verdade ou das verdades?" é uma questão filosófica. Fazer filosofia da matemática não consiste em demonstrar teoremas, em descobrir novas propriedades dos números ou das figuras. Isso é contribuição do matemático. Fazer filosofia da matemática é perguntar como raciocina o matemático, que é uma demonstração, qual a origem das noções matemáticas, qual o fundamento dos postulados que nos pedem que admitamos. A ciência constrói todo um edifício de teorias. A filosofia escava sob suas construções para explicar seus fundamentos. Enquanto o sábio procede por construções, o filósofo procede por escavações. A conduta da filosofia é reflexiva. Ademais, não se trata de reduzir a filosofia a uma reflexão sobre a ciência. Ela também medita sobre a arte, sobre a vida cotidiana, sobre todas as experiências vividas. "Nada de humano pode ser estranho" à filosofia.